Acordo sela paz entre a ética e família de doadora que revolucionou a medicina

 
Henrietta Lacks, em imagem
dos anos 40 AP



Instituto americano e descendentes de Henrietta Lack criam termos para uso das células HeLa, usadas em mais de 74 mil trabalhos científicos. Agricultora pobre doou involuntariamente células de seu tumor para a ciência em 1951.



Há uma chance quase garantida de que todos os leitores desta reportagem já tenham se beneficiado do progresso científico gerado a partir de uma americana que morreu com um agressivo câncer cervical aos 31 anos, em outubro de 1951. Sem que Henrietta Lacks soubesse, médicos do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, extraíram um pedaço de seu tumor para estudo pouco antes de sua morte. Descobriram que a célula, batizada com iniciais HeLa, conseguia se multiplicar em laboratório indefinidamente e, por isso, passou a ser chamada de célula imortal, com inúmeras aplicações práticas na rotina científica. Mas pesou na consciência tanto benefício sem que sequer o nome de Henrietta fosse mencionado nas publicações que usam suas células. Um artigo publicado ontem pela revista "Nature" é uma tentativa pioneira de reconciliar a ética com o legado de HeLa.

Por muitos anos, cientistas tentaram multiplicar células em laboratório, mas elas sempre morriam. O problema é que as células normais morrem, enquanto que as cancerígenas são programadas para se replicarem indefinidamente. Por conta disso, as células do tumor de Henrietta - uma agricultora negra numa época em que a segregação racial nos EUA era a regra - servem há 62 anos para testar novos remédios, estudar como uma doença evolui, descobrir se uma droga é segura e avaliar os efeitos da poluição no corpo humano. Elas também permitem investigar a ação de vírus e bactérias. Vacinas, como a da poliomielite, quimioterapia, a reprodução in vitro e o mapeamento genético só se tornaram possíveis com culturas das células de Henrietta. Apesar de extraídas sem o consentimento da mulher, não havia leis na época que considerassem o procedimento ilegal.

O genoma da célula HeLa está desde agora sob o controle de um banco de dados de acesso restrito. Pesquisadores terão que pedir autorização ao Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, para ter informações do código genético de HeLa. Só poderão usar os dados quem concordar com os termos de uso formulados por um painel de representantes do NIH e dos descendentes de Henrietta. Entre os termos, está a obrigação dos pesquisadores enviarem ao NIH um relatório contando sobre o uso das células. Além disso, foi solicitado formalmente que todos os cientistas façam nota em suas publicações da contribuição de Henrietta para seu trabalho, caso usem as células.

"A história dela está acelerando mudanças políticas duradouras, que terão proteção e respeito de futuras gerações de pesquisadores os quais não ocorreram durante a vida de Lacks", afirmaram Kathy Hudson e Francis Collins, dois diretores do NIH, no artigo publicado na revista "Nature".

O acordo para o uso das células HeLa já foi inaugurado com a publicação, nesta mesma edição da "Nature", de um trabalho chefiado pelo cientista Jay Shendure na Universidade de Washington. Sua equipe fez o sequenciamento genético em alta definição da célula cancerígena HeLa de linhagem CCL-2. A leitura de seu DNA revelou que a célula é "surpreendentemente" estável em suas mutações e capacidade de reprodução. O mesmo trabalho revela que um pedaço específico de seu DNA contém o papilomavírus humano (HPV) do tipo 18. Os autores acreditam que foi a partir desse detalhe no código genético de HeLa que deflagrou a reprodução do tumor que matou Henrietta.

Estima-se que 74 mil trabalhos científicos usaram o tipo de célula para alcançar seus resultados. Um pesquisador calculou que, juntas, essas células poderiam dar três vezes a volta na Terra. Rebecca Skloot, biógrafa de Henrietta, estima que dez novas pesquisas sejam concluídas a cada dia com as células. Quando a família Lacks descobriu, por obra do acaso, o que havia sido feito, em 1973, as células de Henrietta já haviam até ido ao espaço - para testar a ação da falta de gravidade. E a descoberta não trouxe qualquer melhoria a suas vidas.

Mas a gota d'água veio em março, quando parentes de Henrietta souberam que cientistas alemães do Laboratório de Biologia Molecular europeu mapearam o genoma de uma linhagem de células HeLa e o publicaram sem restrições na internet para download. Nesta época, o estudo da Universidade de Washington, financiado pelo NIH, também estava em andamento.

Três dias de encontros com os Lacks
Depois que souberam da queixa da família Lacks, a equipe europeia retirou do ar o genoma da célula, e a dupla americana Kathy e Collins fez três viagens a Baltimore para discutir com a família como chegar a um acordo. Três hipóteses foram postas na mesa: o uso irrestrito, como ocorreu até então; o acesso fechado, através do consentimento com os termos da família; ou a proibição total do uso. O acesso fechado venceu por unanimidade.

Nestes últimos 60 anos, estima-se que mais de 50 milhões de toneladas de células HeLa tenham sido replicadas em laboratório. É óbvia a chance de que qualquer outro cientista do planeta faça ou tenha o sequenciamento do código genético da HeLa e o use sem o consentimento da família. Segundo informou a NIH, os Lacks sabem dessa possibilidade e, diante dela, o instituto faz um apelo para que a comunidade científica respeite a vontade da família.

Em entrevista à "Nature", Collins contou que, durante suas visitas à família, os Lacks mostraram bastante conhecimento sobre a história da célula HeLa, mas não tinham familiaridade sobre o que era um genoma. "Tive uma clara noção que eles entendiam bastante a ideia de que as células HeLa fizeram coisas boas e que foi por causa disso que a família teve sua contribuição para o avanço da medicina".


FONTE: O Globo, 8/08/2013



Leia o artigo:

Nature Comment: Family Matters
Reference: Hudson, K.L., Collins, F.S. Family Matters. Nature. 500, 141-142 (2013)

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